terça-feira, 1 de novembro de 2016

Algumas coisas que você deve saber se você conhece alguém com câncer

Tem uma coisa que me incomoda muito, e outras que me incomodam ainda mais. A que não me irrita mais é ter que engordar com comida ruim. Não te mandam engordar com chocolate, mousse e churros. Você tem que engordar com inhame, batata doce e arroz com feijão. É lógico que estou exagerando, porque podia engordar com pão, e eu gosto de pão. Mas eu não quero mais ver inhame e batata doce na minha frente. Além disso, a restrição das fibras é muito chata. Eu gosto de frutas e legumes e não podia comer os que tinham mais fibras. Com a quimioterapia que estou fazendo hoje não há mais restrições alimentares.

Mas a coisa que mais me incomoda são os compromissos. Você pensa que agora que está doente terá um tempo para descansar, ver netflix e dormir? Doce ilusão. O regime militar começa no hospital, tem hora para tudo. Hora para acordar, para tomar café, para tomar banho. Hora para limparem o banheiro e o quarto. Aliás, se você não toma banho acaba prejudicando a limpeza do quarto, porque uma é depois da outra. Deve quebrar o procedimento... 'paciente tomou banho' - em branco, daí fodeu com o protocolo. Depois do quarto limpo tem a hora com a fisioterapeuta, hora do lanche, de almoçar, tem hora da visita da médica, tem fisioterapeuta de novo, hora de lanchar, de jantar, de lanchar de novo... Isso sem contar com os horários de todos os remédios. Ou seja, você quase não dorme e muito menos vê netflix, porque, para completar, o hospital não tem Wi-Fi. Quando você sai do hospital e vai para a casa da sua mãe, a rotina continua, porque tem alguém te observando e que não te deixa relaxar por completo. Você consegue dormir um pouco mais, ver um pouco de netflix, mas não tanto. Daí vêm os compromissos fora de casa. Quimioterapia, injeção de sei lá o que na clínica, oncologista, nutricionista, psicóloga, analista, exame de sangue, tomografia, ressonância, cirurgião, médicos de outras especialidades. Fora isso tudo você tem que arrumar um tempo para fazer exercícios. Ah, e tem aqueles amigos que querem te ver, uns porque acham que será a última vez e outros porque acham que você sobreviveu. Daí você sai marcando café e suco, porque você não sabe dizer não, não bebe álcool há séculos e imagina que não possa beber. Por outro lado, se eu pudesse beber ia acabar virando alcoólatra, o que me levaria para mais um compromisso, o AA.

Outro problema são as pessoas. Eu entendo que elas não saibam o que dizer para uma pessoa doente, mas foda-se. Vejam se aprendem de uma vez por todas. Por isso eu deixo aqui algumas orientações. É muito chato você ser overanalisada o tempo todo. Deixem isso para os médicos, psicólogos, enfermeiros, técnicos, nutricionistas e o caralho a quatro que a gente tem que encontrar toda semana. Eles já fazem esse papel. Já basta eles dizendo, "engordou heim". A pessoa sabe que tá com uma trombose e que, por isso, ficou com uma cara de buldogue. Você não precisa repetir. A pessoa sabe que engordou também. Eu não preciso que todo mundo que eu encontre me lembre disso. Eu não saio por aí falando para as pessoas, "nossa, você embarangou heim", ou, "nossa, como você envelheceu", ou, "nossa, você sempre foi muito feia". Eu não faço isso. Quando não souberem o que dizer, fiquem calados. Mesmo que não consigam, tentem. Eu já ouço isso pelo menos uma vez na semana. Eu tenho quimioterapia toda semana, tenho tido pelo menos um médico por semana, pelo menos um exame de imagem por semana, fora os exames de sangue. Então, tentem falar de outras coisas, ou falem até sobre câncer, mas não me analisem. Eu já sou analisada o suficiente.

Outra coisa que me incomoda é minha trombose. Eu comecei a inchar novamente, no pescoço, braços e rosto. A cara de buldogue voltou com força total. Daí a médica pediu uma angiotomografia e deu que o trombo tinha aumentado um pouco. O suficiente para me deixar inchada, mas não o suficiente para resolverem a situação com um procedimento cirúrgico. Pois bem, vou aguardar mais um pouco essa situação. Puta da vida, mas vou aguardar. Terei que aguentar mais um tempo esses comentários inúteis do tipo, " você engordou, mas tá ótima" e as faltas de ar e roncos durante a noite.

Eu imagino até que não esteja num estágio avançado da doença, porque se estivesse, as conversas seriam assim:
Ser humano sem noção - não vai deixar seu cabelo crescer não, é?
Eu em estágio avançado - hellooo, você se lembra que perdi meu cabelo inteiro? Ele não cresce que nem capim.


Ou ainda:
Ser humano sem noção - cortou seu cabelo curtinho né? Cansou de cabelão... Eu também.
Eu em estágio avançado - não, eu não cansei, foi meu cabelo que cansou de mim e caiu todo...


Ou,
Ser humano sem noção - engordou heim...
Eu em estágio avançado - pior você que É gorda e feia e dai não tem jeito...


Resumindo:
- vocês podem até falar sobre câncer, mas não nos analisem o tempo todo.
- não digam que engordamos, nem que emagrecemos. Não digam nada.
- não falem do nosso cabelo.
- não digam que a gente nem parece que tem câncer e que estamos muito bem e quase não temos efeitos colaterais ao tratamento, porque a gente tem bastante efeito colateral, mas não ficamos falando deles o tempo todo.
- não digam, cabelo cresce e tem peruca para isso... A gente sabe disso, mas vocês não têm noção de como é olhar uma pessoa sem cabelo no espelho.
- eu passei muito tempo sem reclamar de nada, até aparecer essa merda de trombose... Deixem a gente reclamar sem dar opiniões. Aliás, não opinem nem sugiram nada, a menos que a gente peça.