terça-feira, 30 de maio de 2017

AS VANTAGENS DE NÃO SABER E AS INUTILIDADES DE UM LIVRO. OU VICE-VERSA.

Ninguém sabe ao certo a idade de uma das minhas tias. Não que ela esconda, como minhas amigas que têm algo entre 45 e 55 anos, mas ela mesma tem suas dúvidas. Toda a família achava que ela havia nascido aqui no Brasil, até uns anos atrás, quando ela veio com a notícia bombástica que, na verdade, nasceu na Polônia, veio para o Brasil escondida e foi registrada aqui. E ninguém sabe quantos anos tinha quando chegou. Algo entre 1 e 3 anos, talvez. Mas isso não importa. Hoje ela deve ter algo entre 89 e 91, é praticamente cega e mora sozinha na casa de dois andares em que viveu quase a vida inteira. Por questões de segurança, a filha queria que ela se mudasse para seu apartamento. Ninguém entende por que minha tia quer continuar morando sozinha numa casa velha de dois andares. Só eu entendo. Apareceram mais nódulos depois da cirurgia e eu me toquei que o câncer e seus tratamentos me acompanharão para sempre. Não que seja uma coisa ruim, mas é uma consciência de que a vida tem um fim e de que você tem um prazo de validade, que não é longo. Aí, vocês vão me dizer, "mas a gente nunca sabe... eu mesmo posso atravessar a rua e morrer atropelado". É verdade, mas viver na ignorância é uma bênção. Eu vejo milhares de pessoas, principalmente no Instagram, vivendo em perfeita ignorância, narrando seus maravilhosos dias na academia, postando fotos de pratos lindíssimos, corpos sarados, six pack abs, caras de bicos de pato, seus enormes problemas com unhas encravadas e muito, muito photoshop e ângulos muito bem calculados. Voltando à consciência da finitude.... partindo da premissa de que eu já tenho consciência da morte e não sou mais ignorante sobre isso, o que fazer agora? Postar meus belíssimos dias tomando quimioterápicos na veia? Não, isso não tem nada de interessante nem para os outros e nem resolve meu dilema existencialista. Na busca pelo sentido da vida eu assisti, pela milésima vez, ao "the Meaning of Life", do Monty Python. Ri, pela milésima vez... eles são geniais... e continuei no drama da minha busca.

Eu poderia largar o trabalho e dar a volta ao mundo. Mas não adianta. Um dos problemas de uma condição grave dessas é que você se sente um doente inútil na maior parte do tempo e o trabalho te ajuda a não se sentir doente, nem inútil. Por isso entendo perfeitamente os velhinhos que não querem enfermeiros nem cuidadores, ou que não querem se mudar para a casa dos filhos ou para um asilo. É por causa dessa sensação. Se os asilos fossem mais atraentes, se ao menos tivessem animais de estimação, plantas para cuidar, cursos de artes ou orgias regadas a álcool e drogas e enfermeiros fazendo striptease... Como não tenho acesso a um asilo desses me resta continuar a vida, um dia após o outro, ir ao trabalho, voltar a fazer as coisas que eu gosto de fazer, na medida do possível, e continuar nessa eterna busca. Nesse meio tempo, e jogando papéis e livros fora, eu dei de cara com o livro do Drauzio Varella sobre doentes terminais. Logo no início ele fala sobre as perspectivas que costumam mudar quando se está com uma doença grave e de como alguns doentes mudam muito. Eu ainda não sei exatamente o “que” eu mudei ou no “que” me transformei. Uma coisa mudou: não faz mais muita diferença o que as pessoas pensam de mim. Se falam mal de mim no trabalho, se não sou reconhecida profissionalmente, nem se sou reconhecida em lugar algum.... não faz diferença. Se eu sou sarcástica com uma coisa que me oprime e algum amigo se sente ofendido e me dá um unfriend no Facebook, não faz diferença.... se alguém me agride no trabalho, vou responder. Se eu achar que o silêncio ofenderá mais o agressor do que uma resposta, permanecerei em silêncio. Se char que devo derrubar uma moto que bloqueou a garagem, derrubarei a moto... mas voltando ao Drauzio, achei que fosse encontrar relatos de pacientes que mudaram sua visão de mundo e acharam um sentido na vida. Doce ilusão. O livro foi escrito pelo lado do médico. Ele serve para outros médicos ou envolvidos, que não sabem lidar com doentes, que não sabem o que dizer, que têm medo de doentes graves, que têm medo da morte, que não sabem que o doente quer ter uma vida próxima do normal... Não serve para o doente. Doentes, não leiam. Embora sempre ache que o final do livro vá me surpreender, que acontecerá algo que valha a pena, tipo um crime sanguinário, ou uma orgia, parei essa merda no meio e ainda estou pensando se continuo ou não. Por hora, desisti da busca e fui no cabeleireiro.

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